O Reinado Uma tradição em Minas Gerais
O Reinado Uma tradição em Minas Gerais
Diversas são as festas folclóricas ricas em cores, movimentos e ritmos, que realizam em Minas Gerais.
Malgrado as incompreensões e perseguições que lhes são muitas vezes movidas por autoridades religiosas, elas persistem. Assim é que em vários pontos do estado são encontradas festividades como as folias de reis, os botocudos e, principalmente, as conhecidas por congadas, reisados ou reinados.
A origem é assaz conhecida. Ludibriado em sua boa fé, como muitos outros, um rei africano, com dezenas dos membros da tribo, atravessou o Atlântico, nos sombrios porões de um navio negreiro, e foi com eles trazido para ser escravo em Ouro Preto, então capital da província. Rei em sua terra, jamais se conformou com o cativeiro. Aproveitando as raras horas livres, trabalhou, sem descanso, a fim de obter os meios necessários para comprar cartas de alforria. Libertou primeiro seu filho.
Continuaram trabalhando juntos, pois o intento era libertar todos os componentes da tribo. Com a cooperação geral, isso foi conseguido. Reza a tradição que negras punham escondido nas carapinhas o ouro que conseguiam e iam lavar as cabeças nas pias de água benta das igrejas da cidade, a fim de que o metal se depositasse no fundo.
Negros previamente avisados iam depois, discretamente, retirá-lo. Os esforços do grupo foram compensados. O rei negro, que se convertera ao catolicismo, foi batizado com o nome de Francisco. Daí a alcunha de Chico-Rei.
Tornou-se devoto de Nossa Senhora do Rosário e, para agradecer-lhe a grande graça alcançada, organizou as festas do Reinado, nas quais sua nova crença se mescla com crendices fetichistas.
Voltou, assim, a imperar entre os seus, também convertidos, mas com raízes atávicas demasiado fortes, prendendo-os aos ritos nativos da África.
Espalhando-se o costume por diversos pontos do território mineiro, o reinado é sempre realizado. Embora existam diferenças entre os de uma cidade e de outra, as linhas gerais permanecem, mais ou menos as mesmas.
Que se tome como exemplo o da cidade de Alvinópolis, festejado no mês de outubro. Tem início numa noite de sábado, com as cavalhadas, quando é feita uma reza na Capela de Nossa Senhora do Rosário.
Terminada esta, já com trajes típicos, os dançantes dão volta, a cavalo, em torno do pequeno templo, logo após o levantamento do mastro. O domingo imediato é o dia do reinado propriamente dito.
Os participantes são na sua quase totalidade homens de cor. Dançam também entre eles algumas crianças. Usam sapatos de pano, brancos, como as roupas que vestem, compostas de calça e blusa.
Sobre a calça colocam um saiote, todo enfeitado com fitas, penas, flores de papel de seda e pequenos espelhos, que cintilam com reflexos de luz solar, quando dos movimentos ritmados. Os instrumentos musicais, violas, pandeiros, caixas, são, do mesmo modo, ornamentados.
Crêem os negros locais que São Benedito, Santa Ifigênia e Senhora do Rosário moravam juntos, em uma loca de pedra. É justamente com uma alusão a isso que as danças se iniciam. Com cantos e palavras, os dançantes representam uma cena em que as tribos africanas – os moçambiques, os Costa d´África, os congoleses – procuram fazer com que os santos deixem seu esconderijo, sendo inúteis suas tentativas.
Os moçambiques esforçam-se, tocando “puíta” (cuíca), mas em vão. Só quando se aproxima o rei do Congo eles saem.
Um velho Moçambique tenta dizer que São Benedito era mau. A Senhora do Rosário explica que os três são irmãos (Sic). É cantado o seguinte coro :
“Miangana me disse que óia lá
Lá vai, lá vai, Simão Gulê
Se é São Binidito, óia lá.
Se é o negro d´Angola pode vi
O negro d´Angola eu quero vê.”
Miangana é nome africano para dizer Nossa Senhora. Quando se afastam, é feita a “despedida da loca”:
“Adeus, Miangana, Muque tu vaiá
Adeus, Miangana, nosso povo vai s´imbora.”
Além dos reis de cada grupo, há os chamados rei e rainha do povo, que usam cetros, e, como os já citados, são sempre negros. Mas o rei e a rainha do reinado são quase sempre brancos, inclusive alguns das melhores famílias da cidade.
O rei oferece bebidas e a rainha um farto banquete, não só aos dançantes, cerca de duzentos, como às demais pessoas que vão visitá-la nesse dia.
Terminada a despedida, os dançantes vão até a casa do rei e, depois, à da rainha, a fim de buscá-los. Ambos se trajam de acordo para a ocasião.
Usam capas coloridas, na maioria das vezes, de cetim enfeitadas com arminhos, bordadas com vidrilhos e lantejoulas. Defronte à casa do rei, cantam :
“Rei Sinhô, já chego sua hora
Faz as cortesia, vamo-nos embora
Vamos ao Rosário, visitá Nossa Senhora
Vamos ao Rosário visitá a mãe de Deus.”
O rei sai, com um pajem a carregar-lhe o guarda-sol, e segue com a turma, a fim de buscar a rainha :
“Senhora rainha, saia prá fora
Faz a cortesia, vamo-nos embora
Rainha Senhora, segue em nossa guia
Vamos visitá a Virge Santa Maria.”
È o que se chama tirada do rei e tirada da rainha. Todos reunidos, seguem para a capelinha do rosário. Ela se localiza num monte que os dançantes sobem quase de joelhos, isto é, ajoelhando-se a cada passo. Em frente à igreja, cantam :
“Santa Ifigênia, mãe da Virge Pura
Viemo festejá que hoje é vosso dia
São Binidito, que santo tão bunito.”
Durante a missa, de joelhos, o rei e a rainha beijam a coroa que o padre a seguir neles coloca :
“Rainha Senhora, entrega a coroa
Entrega a bandeira que veio de Lisboa.”
Terminada a cerimônia, levam a rainha à sua casa, onde almoçam. A ela é oferecida uma dança, justamente a mais bonita : a batalha.
A maioria dos dançantes é do grupo congolês. O rei de Aruanda se aproxima, querendo tomar o reino à força. Ao saber do seu intento, um secretário do rei do Congo manda um soldado avisar a seu soberano, que lhe diz :
“Vai ver que exército de povo é esse que está entrando no meu reino com tanto atrevimento, sem pidi licença. Vai-me e traga a resposta.”
Inquirido, o rei da Aruanda diz, de modo brusco, que não tem compromisso, nem satisfação a dar.
Voltando, receoso, o soldado se dirige ao seu rei :
– “Saberai vossa majestade que o povo lá é pouco e o homem é muito e eu lá mais não vou.”
– “Arretira daqui, patife” – diz o rei, que logo chama o capitão :
– “Ô meu secretário da minha real coroa.”
– Amigo, senhor, a vossos pés estou.
– Vejo que temos novidade na terra. Tem medo?
– Medo? Vossa real majestade estará brincando ou será zombaria? Sete combates eu tenho combatido, todos sete foram recebidos, para hoje nesta rala batalha ser ofendido. Se houver a fortaleza de meus braços, da minha espada, terei de combater co´cês todos. Meus pretinhos, ocês prá mim é um jantá, é um petisco. Sou bom guardadô de segredo, sou uma caixa sem fundo, sou um saco de duas boca.”
O soldado medroso se aproxima.
– “Amigo, eu te achei e deixei logo aqui, passeando nessa praça, prá hoje te encontrá nessa mardita cachaça.
– Encantado, encantadiço, quando eu bebo dez réis e meio ainda fico mais mandigueiro.
A chuva que choveu ontem no morro da ladeira foi quanta gota de sangue correu no golpe da minha espada. Deceno pela ladera abaixo, encontrei sete vulto de capote. Pelo meu revólver puxo, sete balas te ponho na cabeça. Do outro lado, ouvi um grito, prendo o valentão.
– Te prendo com dois capitão.
– Saberai vós, o golpe dessa espada é um golpe tão profundo, chora céu e terra e eu abismo todo mundo.
– Aumento meus prazeres com tanta minha alegria e grande satisfação terei o consumo do meu tesouro.”
“Estrela do céu brilhante
Estrela com tanta valia
Alumiasse o mundo inteiro
E o rosário de Maria.”
O capitão responde :
“Rosário sacramentado, sacrário divino
Deite sobre a casa santa
Onde Deus fez a morada
Onde mora o “cális” bento
E a hóstia consagrada.”
Em seguida, diz que irá tomar providências, a mando do soberano. E avança com a espada, assim como os soldados, em direção aos invasores, travando-se a batalha. O soberano estrangeiro se dirige a ele :
– “Eu sou um rei da Aruanda, vindo de um caçambo. Sube e tive por notícia que nesse dia é de festa e vim com toda minha soldadesca prá venerá a Senhora do Rosário.”
Ao ser cientificado, o rei do Congo fala:
– “Vorta e vai dizê ao rei, se for festa, festa e mais festa, se for guerra, guerra e mais guerra.”
O rei da Aruanda :
– “Viva o nosso rei do Congo!”
Todos vivam e levam-no até ao outro, que se lhe dirige na sua chegada :
– “Quem és tu que vem tanto minar-se com as armas? Antonce hoje entrega a ti, escuta a mim, senão há de vê seus guardas mortos, seu sangue derramado pelas campinas.”
– “ Grande temeridade seria a minha, temeridade em momento de tão grande cortesia.”
O rei do Congo entrega ao visitante uma bandeira de Nossa Senhora do Rosário, que, aliás, é carregada por uma mulher durante todo o reinado. Confraternizados, os soldados cantam e dançam em conjunto. Os diálogos são intercalados por cantos, sendo mais cantada a estrofe que se segue :
“Preparai as armas toda minha gente
Que é tempo de bataia de guerra e fogo.”
Quanto a Aruanda, acreditam alguns folcloristas, parece que aceitando idéia da cronista Eneida, ser corruptela de Luanda. Diziam “rei da Luanda”. Como não há nada escrito, foram modificando com o tempo. Tudo é conservado exclusivamente através da tradição oral. Os pretos de hoje continuam a repetir estrofes inteiras cantadas em dialetos que desconhecem. Eis por que diversas palavras portuguesas foram modificadas e já não formam sentido.
Outra dança que destaca é a marujada :
“Marinheiro que chora, chora
chora marinheiro,
marinheiro, marinheiro
Ai porto do mar
Eu fico apaixonado
De num podê passá prá lá.”
Na segunda-feira, é dada posse aos que serão reis do reinado no próximo ano. E as danças continuam.
De há muito a noite avança com suas trevas e os cânticos ainda ecoam pelas ruas, perpetuando as lembranças dos ancestrais africanos :
“Balainho de fulô, balainho de fulo
a coroa do rei balanceô!”